Sergio Faraco      

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Lá no campo

 

ENTREVISTA
O escritor que preferiu calar

 

 

 

LÁ NO CAMPO

Sergio Faraco

A trilha se embrenhava num capão e por ela seguiram os dois ginetes, trote manso, até que o mato se despilchou do arvoredo grosso, das ramadas, do cipoal e das folhagens, desparramando-se em escassos espinilhos e umas poucas sina-sinas. Começava a escurecer. Já em campo aberto, subiram vagarosamente uma coxilha. Quem olhasse de longe os perderia de vista na descida e os veria ressurgir adiante, noutra elevação, com o mesmo trote repousado.
Os ginetes eram o velho Cuertino López e seu filho Joca. Ambos trabalhavam numa estância lindeira e viajavam sem pressa para cumprir, na vizinhança, um dever solene.
Era noite fechada quando chegaram à sede da fazenda cujos campos tinham acabado de cruzar. Aproximaram-se da casa pela frente, a cuscarada acoando ao redor. As paredes chatas branquejavam entre as árvores, eles viam a varanda em arco e ao lado o traço esguio do catavento, como um louva-a-deus em pé. À regular distância o galpão, a grande porta iluminada, atrás do galpão uma meiágua a dessorar suas indecisas luzes. Num sítio baixo, descampado, começavam as mangueiras, os banheiros do gado, e subia de lá um cheiro embrulhado de bosta e remédio.
No palanque havia dois cavalos. Maneados e dispersos, mais quatro, e os seis traziam garras domingueiras. O velho e seu filho detiveram-se ali, mas não desmontaram. Das casas já vinha um homem.
– É Vicente? – perguntou Cuertino ao filho.
Era. O velho saudou o capataz da estância, que o convidou:
– Vá se apeando, compadre.
– A bênção, padrinho – este era Joca.
– Deus te abençoe – disse Vicente, ao mesmo tempo em que sossegava os jaguaras.
Apearam. Cuertino amarrou a montaria no palanque, Joca maneou a sua.
– Noite bonita – disse o velho.
– De primeira – assentiu o capataz. – Em noite de paz velam os santos.
Na frente do galpão, sob os cinamomos, um fogacho reunia a comparsa. Os recém-chegados trocaram adeus e se acomodaram, sentados no garrão. Uma garrafa refrescava num balde d'água, longe do fogo, e a caneca corria de mão em mão. Na sua vez, o capataz enchia e a volta recomeçava, sempre pelo lado esquerdo. Quase não conversavam. De vez em quando um deles avançava um chiste e riam com recato, depois se aquietavam e algum ria de novo, sozinho.
Conforme a peona anunciou a bóia passaram todos ao galpão, onde a mulher deixara a panela sobre a pedra de afiar. Comeram em ruidosos pratos alouçados, sem falar, mas ao final da refeição fizeram questão de atestar, com discretos arrotos, que a canjica com charque estava ao contento. Não chegaram a matear depois, como cumpria: veio outra vez a peona, serelepe, dizer que o Doutor Romualdo mandava saudar os visitantes e os invitava para um copito de licor.
Homem já maduro, mas robusto, de rosto aberto, franco, um vulto às antigas, o estancieiro os esperava na varanda, com a mulher e a filha. Pediu que sentassem nas cadeiras de palhinha, não cerimoniassem. A mulher serviu o licor, e a menina, numa bandeja, ia oferecendo aos homens. Ao frendera Joca, espiou-o, e o guri se mosqueou no assento, seguindo a moça com um olhar de espicho.
Praticaram do que lhes era familiar: a última esquila nas fazendas do distrito, o nível escasso dos açudes, o céu que se enfarruscava e não favorecia. Caladas, mãe e filha ouviam retalhos da conversação e se abanavam, carneadas pela mosquitama. Cuertino elogiou o licor, "de gosto sem exemplo", e Vicente alertou: era hora de substituir quem estava sem comer.
– Espero rever os senhores em dia mais a preceito – disse o estancieiro ao despedir-se.
Três deles, Guedes, Paco e Ataíde, rumbearam para a meiágua atrás do galpão. Os outros voltaram ao fogo, que a peona alimentara com fornidas achas.
– Bom homem – disse Cuertino.
– De fato – disse Vicente.
E então um longo silêncio, interrompido por ruídos indistintos de cozinha, atropelos da terneirada no chiqueiro ou pelo último sorvo a cada vez que o porongo cambiava de mão. Joca, pensativo, riscava a terra com um graveto.
– Doutor Romualdo de Souza... – fez o velho.
– É... – fez o capataz.
Chegavam três homens, Luicito, Marciolino e Pisca, que até então tinham feito presença na meiágua. Todos se conheciam.
– Como é que tá lá dentro – indagou Vicente.
– Meio abafado – disse Luicito.
– E Dona Luíza – quis saber Cuertino.
– Conformada.
E lá vinha de novo a peona...
Era uma chinoca petiça e ligeira, desprovida de beleza mas não de carnes. Entre um mandado e outro, decerto achara tempo para correr ao quarto, pois agora trazia no cabelo uma fitinha coloreada em tope. Na cozinha, ela disse, tinham aquentado a canjica. Luicito, Marciolino e Pisca entraram no galpão e a mulher se quedou por ali, remanchando. O velho notou que ela mexia no fogo e olhava para Joca.
– Posso ir agora, pai?
– Se te agrada...
Joca ergueu-se com agilidade. Era alto, moreno, tinha cabelos longos e lisos. Andando, abalançava-se para um lado e outro, feito o mangolão que em verdade não era. O velho o seguiu de revesguelho até a porta da meiágua.
– E essa peona, Seu Vicente? Ativa, não?
– Demais.
– Ainda solteira?
– Pois continua.
O capataz encheu a cuia para Cuertino.
– O Joca tá crescido. Ainda ontem nem sabia montar e vivia inticando com as galinhas.
– Crescido e safado – disse o velho.
Vicente riu mansamente.
– É da idade. Qualquer dia se arroja por aí a la cria.
– Não me avexando...
– Isso não, é um galinho buenaço, cumpridor.
– Galinho eu sei – disse Cuertino.
A cuia voltou para Vicente, que filosofou:
– E assim vai-se vivendo, compadre. Um nasce, cresce, cai no mundo...
O velho apontou o beiço para a meiágua:
– E de repente dá com a cola na cerca como o senhor seu sogro.
– É verdade – e Vicente olhou também para a casinha, como se esperasse ver o sogro lá na porta.
– Que mal-pergunte – tornou Cuertino —, como é que o morto lhe tratou?
– Não me queixo – disse o capataz. – Me deixou uma pontinha de gado, vinte e seis cabeças. Estão na invernada do fundo, já com alguma cria.
– Tem marca?
– Ainda não, mas agora vou botar. Aquela brasina que andou saltando pro seu campo faz parte do interesse.
– Vaquilhona disposta.
Um dos homens saía do galpão e eles se calaram. Era Luicito, trazendo outra garrafa de caninha. Explicou que tinha tomado a liberdade porque ninguém sabia onde se metera a peona.
– A casa é sua, meu filho – disse Vicente.
Cuertino ergueu-se.
– Vou dar meu cumprimento à comadre.
Na casinha, não viu Joca. Junto à porta e em pé, estavam Guedes, Paco e Ataíde, nas cadeiras as mulheres e entre elas Dona Luíza, já de meio-luto. O morto estava no centro da peça, numa cama de solteiro, em cuja cabeceira haviam colado uma vela. Outras bruxuleavam numa mesa sem toalha, encostada na parede. Um lampião de querosene pendia de um gancho preso no teto.
Cuertino curvou-se atrás da mulher.
– Meus sentimentos, comadre.
Ela levou um paninho aos olhos. O velho fitou gravemente o morto e esmerou-se num pelo-sinal pausado e respeitoso.
Estava quente ali, havia mosquitos e um irritante grilo a cricrilar tão perto e tão invisível que se chegou a pensar – e Dona Luíza até deu uma espiada – que tivesse entrado nas narinas do morto.
Cuertino fez presença o bastante para um homem de sua idade. Ao sair, foi ver os cavalos. Alguns pastavam, os maneados, os do palanque imóveis como estátuas noturnas, menos um que tinha acabado de bostear e abanava a cola, mui campante. Ocultou-se atrás de um deles e urinou, respirando fundo. Reinava um cheiro bom de esterco fresco.
Encontrou junto ao fogo Vicente, Luicito e Pisca, pois Marciolino se oferecera para bracear mais lenha. A caneca andava outra vez de mão em mão. O velho deu seu gole e contou que um grilo se acampara no gogó do morto. "Nossa", disse alguém, e Luicito aproveitou para contar o causo de um morto que não morrera. Quando terminou, Vicente deu uma palmada na coxa.
– Vou recolher as tábuas. Já é tempo de ir providenciando, antes que o finado – e olhou para a meiágua – resolva sentar na cama.
– Sim, porque cantar já tá cantando – disse o velho.
Os homens acharam graça, Luicito se prontificou:
– Não se incomode, Seu Vicente. Eu e o Pisca cuidamos desse assunto, não é, Pisca?
– E como não!
– Grácias – disse o capataz. – Tem prego e martelo no jirau.
Ficaram só os dois e Vicente lotou a caneca com a sobra da garrafa.
– E o Joca que não aparece... – disse o velho.
– É... – fez o capataz.
Em silêncio, esvaziaram a caneca. Às vezes um resmungava qualquer coisa, e a contraparte do outro era como um eco demorado e vago que só desse voz depois de se esfalfar miles de voltas ao redor do fogo. Um cachorro veio cheirar as mãos de Cuertino, que o enxotou com um palavrão.
– Olhe quem vem lá – disse Vicente.
Era Joca, como vindo da meiágua. Hum, fez o velho, e disse, acentuando as últimas palavras:
– Tua madrinha tá pedindo pra tu ir lá de novo.
Joca parou, como assustado. Passou a mão no cabelo escorrido, deu meia-volta e foi-se.
– Safado – murmurou o velho.
– Não se enfrena colhudo, compadre – disse Vicente, divertido.
– Mas numa ocasião dessas...
– E há outras? Me lembro muito bem que em mil e novecentos e...
– Epa, Seu Vicente, vai desencatarrar a memória?
Marciolino se aproximava com uma braçada de lenha e ouviu o riso do capataz.
– Que é que saiu aí?
– Recuerdos de gente velha, nada mais – disse Cuertino. – E então, Seu Vicente Antunes, já não se oferta caninha em velório, como nos mil e novecentos que o senhor ia lembrando?
Como por encanto apareceu a peona. Vestidinho diferente, limpo, e sem a fita no cabelo. Perguntou se queriam mais canjica.
– Canjica – repetiu Cuertino, como se não entendesse. – Não, grácias.
– Traga mais uma garrafa, faça o favor – disse Vicente. E para o velho, baixo: – Canjica é o que ela andou socando.
O velho deu uma risada e emendou:
– Ou foi atar carqueja na vassoura.
Riram de novo, com espalhafato.
– Oche – protestou Marciolino. – Outra de velho?
– Não – disse o velho —, essa é de gente muito nova.
Veio a caninha e os dois compadres, num assanho só, pediram a Marciolino que fosse até a meiágua e carreteasse o Ataíde para uma roda de truco. Ia começar o bom velório.