Sergio Faraco      

Início   Cronologia   Bibliografia    Crítica    Textos   Contato   Imprimir

 

Textos

 

CONTOS

Guapear com frangos
Idolatria
Madrugada
Saloon
Lá no campo

 

ENTREVISTA
O escritor que preferiu calar

 

 

 

GUAPEAR COM FRANGOS

Sergio Faraco 

Quando o tropeiro Guido Sarasua morreu afogado, aquele López foi um dos que tresnoitaram o Ibicuí rio abaixo e rio acima, na obrigação de não deixar corpo de homem sem velório. Chovera demasiado nos primeiros dias de novembro, as águas se engaruparam nas areias, fazendo espalho nos baixios, corredeiras em grotões que davam voltas e iam alcançar mais adiante o rio, se entreverando nele com guascaços de espuma, marolas caborteiras e um rumor de tropa sob a terra. Desmerecendo o aconselho da razão, aventurara-se o Sarasua à louca travessia e agora jazia debaixo daquele aguaçal endemoniado, pasto e repasto num farrancho de traíras. Encontraram a canoa de borco, presa nos galhos de um salgueiro, e assim começou o resgate em que figuravam aquele López e mais certo Honorato pescador e mais um chacreiro e seu filho maior e outros que não vêm ao caso.
Dois dias se passaram com os homens lancheando o rio até a barra do Ibicuí e volvendo despacito, chuleando o corpo na corrente e naquele mar dentro do mato. Na manhã do terceiro dia, ao botar a lancha n'água, o filho do chacreiro avistou algo que parecia um tronco a resvalar na correnteza. "Olha o morto", gritou o guri. Estavam perto do remanso onde fora achado o bote. Decerto enredado, só agora Guido Sarasua se libertara de sua prisão de água e singrava para o rio maior, sereno, soerguido, solene com um buque de oceano.
Os homens laçaram o corpo e o trouxeram. Deitaram-no em lugar seco e foram reunir-se ao longe para decidir se enterravam ali mesmo - tal o estado em que se encontrava - ou levavam à família. Guido Sarasua, quase sentado em sua rigidez de morto velho, parecia querer ouvir a discussão de seu destino e fitar os homens com os buracos dos olhos comidos pelos peixes. O sol pegava de viés no seu costado e ele parecia mais inchado, mais verde, tão decomposto que o filho do chacreiro, a vinte braças, vomitou três vezes. Os mais velhos, não: já haviam laçado outros mortos naquelas e noutras águas, já não se achicavam no primeiro bafo da podridão. E foi por isso que, num acordo que lhes pareceu decente e respeitador, resolveram que o morto não podia ser entregue aos bichos sem os recomendos do padre e uma vela que alumiasse os repechos do céu.
Honorato lancheava o corpo até o aberto onde haviam arrinconado os cavalos, o chacreiro enviava um próprio à família, o guri ia ao povo cabrestear o padre, e assim foram repartindo os serviços, e assim, àquele López, tocou-lhe repontar o desinfeliz tropeiro, no último estirão de sua triste volta para casa.
De retorno ao paradouro dos cavalos, partiu cada qual com seu mandato e quedou-se solo o López com seu morto.
- Fodeu-se o viejo Sarasua - murmurou. 
A faconaços, atacou um amarilho de bom porte e quitou dele uma forquilha, cuja ponta apresilhou no arreio de seu baio. Com um galho menor e o cordame que lhe emprestara o pesca-dor, fechou e apequenou o triângulo das varas que iam de arrasto - zorra meio achambonada que, na circunstância, resultava ao contento. Perto, atropelado pelas moscas, o Sarasua apodrecia, López precisou trancar a respiração para erguer o corpo e sentá-lo na travessa da forquilha. Terminou de amarrá-lo e se afastou, pálido, suando frio na testa e nas mãos. Acendeu um cigarro, pela folharada no alto do arvoredo esteve um tempo a vigiar o vento, o preguiçoso vento de uma manhã que se anunciava luminosa e escaldante. Com o mato alagado, adiante a areia já secando, fofa, com a ressolana e o tranco de cortejo, a viagem ia pedir mais do que duas horas, razão bastante para acomodar seu rumo a contravento.
Partiu com o baio a passo, cruzando braços de rio, rasas lagoas, areais, o galharedo se enganchava no cordame e ele precisava desmontar, tocar no corpo, vez por outra erguê-lo, sacudi-lo. Nem deixara ainda os sítios inundados quando lhe escapou um gemido. Apeou-se, correu até um pequeno descampado e chegou já vomitando. Sentou-se por ali, arreliado consigo mesmo. Na sua lida diária, de tropeadas secretas que varavam alambrados, de furtivas travessias do grande rio que corria em cima da fronteira, na sua lida de partilhas, miséria, punhaladas e panos ensangüentados, via a morte e a corrupção do corpo como outro mal qualquer, como os estancieiros, a polícia, fuzileiros e fiscais de mato, não podia aceitar que numa viagem de paz viesse a ter enjôos de chininha prenha. E cismava e se demorava na clareira, fumava outro cigarro quando um relincho esquisito do baio e um ruído arrastado e outro relincho o despertaram daquelas sombrias ruminações. Correu de facão em punho e aos gritos espantou o tatu que fuçava nos restos do tropeiro. Sempre chegou tarde. Feroz arranhador de caixões nos cemitérios campeiros, o rabo-mole não poupara o Sarasua, saqueando pedaços do ventre, alguma carne do pescoço, e da sobra cuidava o mosqueiro.
López montou de um salto e tocou o baio quase a trote pelo caminho que escolhera entre o matagal, contrariando o ventinho molengão. Não se animava a olhar para trás, não queria ver o corpo dilacerado e também achava que, olhando, ia padecer demais a danação daquele cheiro. Agora reinava o sol de pico, o arvoredo sombreando curto e o baio assoleado a tropicar. López fumava sem parar para trampear o olfato, tentava distrair-se com pensamentos pueris e no meio deles se intrometiam odores de mornura adocicada. E ele voltava a pensar, a perguntar-se, logo ele, que não tinha o costumbre malo de se quedar cismando, imaginando coisas, como os doutores, os preguiçosos e os jacarés.
De sua inquietude participava o cavalo, sempre a cabecear, trocar orelhas, de quando em quando um nitrido baixo, ameaçador. Outros tatus? Algum graxaim faminto na retaguarda do cortejo? López sujeitou o cavalo, ouviu o rebuliço de pequenos animais pela ramaria. Desmontou, viu que o Sarasua, depois do papa-defunto ou de outros bichos cujo assédio lhe escapara, trazia uma cova na barriga e parte do costilhar já bem exposta. Outra golfada de vômito e, sentindo que perdia a visão e o equilíbrio, afastou-se com passos trôpegos, foi parar lá longe num montículo de areia onde despontava uma sina-sina. Lá o vento favorecia e não sentia cheiro algum, de lá podia ver o baio, o corpo, vigiar e proteger sua carga. Tirou a camisa, enxugou o suor que lhe escorria pela testa e lhe salgava os olhos. O mato era um grande forno verde e a areia já queimava no contato com a pele. López via o baio com as virilhas encharcadas, abanando em desespero a comprida cola para espantar a mutucagem, e figurou que naquela altura, sem ser movimentado, o corpo de Guido Sarasua estaria coberto de centenas, milhares de grandes e médias e pequenas moscas. Pensou em desatrelar o cavalo e partir a galope, emborrachar-se no primeiro bolicho do caminho. Mas não, não ia fazer esse papel de maula. Era um pobre-diabo como todos os tropeiros, chibeiros, pescadores e ladrões de gado daquela fronteira triste, mas jamais faltara à palavra empenhada. Prometera levar o corpo e trataria de levá-lo, ainda que tivesse de vomitar o próprio bucho. Ou de guapear com os bichos. Sim, porque vira uma sombra na areia. No céu, um corvo espreitava o cadáver de Guido Sarasua.
López quis levantar-se, suas pernas vacilaram, e ao menor movimento o estômago se embrulhava. Firmou a vista na direção da carga, o baio abanava a cola, pateava. Passou um segundo corvo em vôo rasante, sumiu atrás das árvores, e era este o batedor mais avançado, o outro permanecia dando voltas, agora mais baixas e menores. López pegou o revólver. Quando o batedor reapareceu ele fez pontaria, ia atirar, perdeu-o atrás do arvoredo. Quedou-se imóvel, cuidando, o baio outra vez se arreliava, deu dois nitridos curtos, raivosos. López ergueu-se, sentiu uma tonteira, uma zumbeira no ouvido, começou a andar e andava mais depressa e prendia a respiração, chegou quase correndo e montou mal, precisou se pendurar nas crinas para pôr-se às direitas no arreio.
O sol do meio-dia abrasava-lhe o pescoço, os ombros nus. López cavalgava com a camisa no nariz e ansiava outra vez por vomitar. Viu de longe, no campo, duas arvorezinhas gêmeas, e disse consigo que não vomitaria antes de alcançá-las. Trezentos metros, quatrocentos talvez, o baio avançava com dificuldade, enterrando as patas na areia, e López ouvia o zumbido infernal como pendurado ao pé da orelha. Que restaria de Guido Sarasua? E restaria alguma coisa para encaixotar debaixo de uma vela? Voltou-se de viés, como para espiar antes de ver. E viu que o bicharedo tinha lidado a capricho enquanto estivera a tomar um alce debaixo da sina-sina. Guido Sarasua era agora um par de pernas despedaçadas, um grande buraco negro das costelas para baixo, e ali se moviam, uns sobre os outros, em camadas, moscas, formigas, vermes e uma profusão de insetos. López saltou do cavalo e abancou-se a dar de camisa no que sobrava do tropeiro. E gritava e voltava a guasquear o corpo, as moscas esvoaçavam em torno de seus pés, de sua cabeça, batendo em seus ouvidos e seu rosto. Alucinado, puxou o revólver, disparou a esmo e o tiro como o despertou. Pálido, boca aberta, começou a recuar, caiu, levantou-se, tornou a recuar, cambaleando, o vômito lhe saía quase sem esforço, descendo pelo queixo, pelo peito. Recuou até sentir que não podia recuar mais, que suas forças se esvaíam, e então caiu, sentindo a areia a arder e a grudar nas costas nuas.
O imenso céu azul ao redor, que via através de uma teia de fibrilações, e novas sombras que lhe cruzavam por cima. Moveu a cabeça e avistou, não longe, aboletado num galho rasteiro e como se soubesse não ter adversários, um enorme corvo negro. Laboriosamente, ofegando, pôs-se de bruços. Apoiou os cotovelos na areia, apertou o revólver com as duas mãos e disparou. A ave tombou, recompôs-se, deu um salto e caiu novamente, a cabeça entre as patas e as compridas asas a bater. López suspirou, deitou a cabeça no braço, seu corpo arqueou-se para um inesperado vômito, mas nada mais havia para vomitar e de suas entranhas brotou um ruído metálico. E uma vertigem que não se acabava. E calafrios. Pensou que precisava erguer-se e o corpo negaceava, os olhos já não se abriam e a cabeça teimava em passarinhar idéias. Fez ainda um supremo esforço, mas os pensamentos se enredavam, fugiam, e antes do desmaio ouviu confusamente, como dentro da cabeça, um relincho feroz, um fragor de patas, e depois não ouviu mais nada.
Por menos de hora esteve aquele López como ausente do mundo, mas ao despertar teve a impressão de que se haviam passado dias, semanas, talvez anos. Deu fé, primeiro, de seu peito ardido. Em seguida, a memória de um cheiro, a memória de um medo e outras memórias e outros medos. Levou a mão à cintura, e não encontrando o revólver pensou-se desamparado, perdido. Tateou a guaiaca, os flancos do corpo, localizou-o no chão a dois palmos do nariz. Pegou a arma e, lentamente, como se vigiado por mil olhos, ergueu o rosto e espiou ao derredor. Longe, além das arvorezinhas gêmeas, lá estava o baio tranqüilo a pastar. Mantinha a forquilha pendurada, mas do corpo nem sinal. López lembrou-se do galope que ouvira e pôde reconstituir a cena: o cavalo disparando, a forquilha aos solavancos, o corpo de Guido Sarasua sendo projetado e volcando no chão. Com preocupação crescente seu olhar transferiu-se do campo para o fim do mato, entre as areias. Nada viu, mas ouviu um rumorejar, algo entre o murmúrio e o espanejar de sedas. Custou a identificá-lo, embora habituado àquela espécie de retouço, tipo bando de china em festo. Era o banquete. López sentou-se, apertando os lábios. De seus olhos saltaram grossas lágrimas que correram junto do nariz e hesitaram na saliência dos lábios, perlando. Passou por ali a língua seca, como a revitalizar-se em seu próprio sentimento. Levantou-se, por fim, descortinando a cercania. No fim do mato, uma dúzia de aves disputava postas de carne escura e ele partiu para lá, cambaleando, o revólver preso nas duas mãos. Alguns corvos se abalançaram naquele grotesco galope com que alçam vôo, os outros ainda se atracavam na carniça quando ele começou a atirar. Quatro disparos compassados, quatro balas perdidas, e as aves se alçaram todas numa súbita revoada de asas e crocitos. Todas menos uma, aquele carniceiro que tentou voar e, de tão pesado, se escarranchou numa ramada. López aproximou-se com surpreendente rapidez e o agarrou. Quis matá-lo pelo bico, esgarçando-o, o corvo se debatia e as garras vinham ferir seus braços, seu peito e até seu rosto. Tomou do pescoço, então, para quebrá-lo, e ao sentir numa só mão o peso inteiro, fraquejou e o bicho escapuliu, meteu-se na mesma ramada onde pouco antes tombara. López fitou-o, fitou o bando que, no céu, persistia em cercana e aplicada vigilância. E eram já mais numerosos, e já vinham outros voando baixo, e outros apareciam pousados em galhos bem próximos, silenciosos, pacientes. O cerco se fechava, e López, por caminhos tortuosos de seu pensamento, logrou suspeitar que os bichos tinham vencido. Procurou a camisa, vestiu-a, deu uma espiada no corvo que, sorrateiro, tentava mudar de ramada. Não, não se considerava derrotado ou covarde. Era a lei, pensava, e pelear com aqueles frangos negros não ia mudar coisa alguma. E era a mesma lei que reinava em sua vida e na vida de seus conhecidos. Todo mundo se ajudava, claro, mas quando alguém morria os outros iam chegando para a partilha dos deixados. Peixes, moscas, tatus, ratos, aves carniceiras comiam a bucho, as coxas e os bagos de Guido Sarasua. Os companheiros levavam do morto uma cadeira, uma bacia, um par de alpargatas pouco usadas, um ficava com a cama, outro com a mulher, e a miuça-lha, como a ossada de uma carniça, ia se extraviando ao deus-dará. De que adiantava guapear com os bichos? Aproximou-se do corpo estraçalhado. De Guido Sarasua ainda sobravam algumas carnes, protegidas pelas costelas e outros ossos maiores - o bastante para um bando de urubus famintos. Desembainhou o facão.
- Me desculpa, índio velho.
E como quem parte uma acha de lenha, curvou-se sobre o Sarasua e abriu-lhe o osso do peito ao meio.