Sergio Faraco      

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Crítica

 

Fabrício Carpinejar

Sérgius Gonzaga
Miguel Sanches Neto

 

 

A CIDADE EM CHAGAS

Miguel Sanches Neto

Relevando as tensões de um tempo sem solidariedade, os contos Sérgio Faraco fazem uma leitura desencantada das trajetórias humanas

O principal sentimento que configura a atmosfera dos contos de Sérgio Faraco (Rondas de escárnio e loucura. Porto Alegre: L&PM, 2000) é o desencanto, sendo os seus personagens habitantes de um mundo em desintegração. Daí o tom amargo de narrativas em que não há transcendência, seja no amor, no sexo ou na vida urbana. Os personagens adultos, neste volume, se deparam sempre com uma porta fechada, que pode ser a miséria, a loucura ou a falta de perspectiva. Eles se sentem inertes, sem a possibilidade de fazer nada. E é este sentimento profundo de estagnação o mote intrínseco de narrativas que encenam a crise de um modelo social. No fundo, e talvez isso seja válido para todo um grupo de artista que se sente irredutivelmente preso ao ambiente da infância, as descobertas e seus prazeres só sejam possíveis no período de formação, sendo tudo depois uma luta cega pela sobrevivência.
Em dois contos deste livro, a infância aparece como território de descobertas sexuais. No primeiro, "Quatro gringos na restinga", dois irmãos sofrem o poder exercido por uma imposição sexual. Afastando-se do território sagrado, a cidade, vão tomar banho na restinga, confrontando-se com os gringos, que lhes fazem insinuações eróticas. O episódio é resolvido com muita artimanha pelo menino mais velho, que acaba enganando os rapazes, vingando-se deles por meio de uma falsa denúncia a um grupo temido na cidade. A última cena, no entanto, revela a curiosidade sobre o sexo de seus salvadores, instaurando a mesma tensão do começo, num conto todo ele marcado por um permanente clima de expectativa libidinosa e que fica em aberto. 
Igualmente curioso, agora pelo sexo feminino, o menino de "Três segredos" mantém uma relação de cumplicidade com uma miss, passando a desfrutar sigilosamente de seus encantos, numa educação sentimental fundada nas descobertas da carne. 
Nestas duas narrativas, estamos num espaço interiorano, que é muito caro ao contista, e num tempo distante, o que faz com que estas pequenas descobertas fiquem afastadas do presente do autor. As relações de conflito, na obra de Faraco, se dão sempre entre o interior e a capital, o passado e o presente, a infância e a velhice, estabelecendo uma tensão que define a tônica desiludida de um livro centrado na passagem do tempo e na mudança do espaço. Se a infância é o território dos possíveis entusiasmos, a cidade pequena não pode ser vista como edênica, pois ela vem investida de um significado negativo, a sua realidade amesquinhadora, que oprime o jovem que sonha, romanticamente, com aventuras em "Legião estrangeira", levando-o a habitá-la de forma evasiva. A cidade é o marasmo, com seu mundinho sem eventos, do qual o personagem foge pela imaginação e pelas notícias lidas em jornais, que antes lhe dão a dura sensação de deslocamento. Mesmo freqüentando o pretensioso Hotel Moderno, o jovem vê-se na província como em um cárcere, tendo que se render à realidade prosaica no fim do conto: "Na sala a velha começou a falar sozinha e sobre seus murmúrios e a música do rádio ele ouviu rinchos de uma carroça, depois outros, e outros mais, eram os verdureiros que voltavam para casa em suas carroças vazias. Noite. Velozmente, a baixa altura, ia chegando outro domingo"(p.98).
Se a cidade pequena é cárcere, que pode levar à loucura, como no belíssimo conto "A enchente", em que o filho esquizofrênico mata o pai e sua secretária, tomando-os por outras pessoas, talvez para se livrar da cidade natal, à qual o personagem volta na condição de rejeitado, ela, a cidade, também pode ser a memória de um amor perdido, que subitamente desperta uma alegria extemporânea, como em "Uma voz do passado". A moça humilde, que o personagem conhecera em Uruguaiana, devolve-lhe todo um tempo e um espaço desaparecidos, conduzindo-o a uma latitude sentimental, em oposição à sua vida sem sentido na cidade grande, na qual vive à espera de um milagre. 
É este mesmo milagre que deseja o personagem humilhado pela miséria de "Sonhar com serras", que, obrigado a hipotecar seus pertences, descobre que o cordão com pingente em forma de coração, presente com que selara o seu amor pela companheira, é falso. Ao saber disso num lugar de opressão e em um momento em que precisava de dinheiro para a sobrevivência imediata, ele sente toda a falsidade da vida que leva na cidade e fica a sonhar com as serras que, do alto do prédio, consegue vislumbrar.
A cidade grande é vista como um espaço dessacralizado, em que se torna improvável o milagre. E mesmo o entusiasmo. Em "Pessoas de bem", o personagem frustrado com sua vida regulada ajuda a manter as aventuras de um pintor boêmio, não só em nome de uma velha amizade, mas também por viver nele o seu sonho de realização amorosa e artística. O pintor rompe com as rotinas, com a pasmaceira da existência sem brilho, colocando toda a sua arte na vida. Deixa os retratos incompletos, para buscar novas modelos, conhecidas antes pelo contato sexual e só depois esteticamente. Numa visita ao apartamento de Tomás, que se encontra desaparecido, o personagem e a mulher de um amigo entram numa outra dimensão, incorporando a personalidade do pintor, o que os leva a um encontro amoroso, inimaginável em outro momento: "Para Cláudia não importava quem eu era. Era um papel sem nome. E nem era um papel, não era nada. Ela queria sua porção de vida - aquilo que entendia como tal -, mas quem se incorporava entre suas pernas, provendo-a da fruição redentora, não era eu, o personagem anônimo: era Tomás" (p.61). É a aura erótico-artística que faz a redenção destes dois seres apagados, que vivem entediados uma era vista como refratária à solidariedade. Tal situação é explorada em "A era do silício", pequena narrativa em que Faraco toma como chave da vida moderna a postura de total negação do outro. 
Tal como acontece com o personagem de "Silêncio" que, protegido em sua casa, é perseguido por um desejo de segurança. Depois de uma noite em que pensa ter tido a casa visitada por um ladrão, recusa-se a saber o que de fato veio bater à sua porta à noite, isolando-se da realidade, para não sofrer com ela. Esta narrativa tem uma contigüidade, não só espacial mas também semântica, com "Madrugada", conto natalino que Faraco escreveu no final do ano passado. Este relato reencena, dentro de uma cidade totalmente inumana, o nascimento do menino Jesus, mas não o seu nascimento real, e sim o simbólico. Antes do sol nascer, a mãe sai do barraco onde mora rumo ao centro de Porto Alegre. No ponto de ônibus, encontra uma mulher idosa e um jovem. Não há qualquer aproximação entre eles, e sim indiferença, o que faz com que a velha sinta-se indignada com a ausência do espírito cristão. A mulher com a criança, sem a figura do pai, que a abandonara, percorre a cidade, da favela para o centro, vendo a miséria urbana em contraponto com os arranjos natalinos. É a jornada de uma Nossa Senhora sozinha e triste, que leva seu filho a uma outra manjedoura, a porta da casa de uma mulher que, no dia anterior, tinha lhe dado alguns presentes. A criança é arrumada no capacho, ficando à espera de um outro nascimento. Todos os signos de desunião e desintegração vão ser postos à prova pela mulher que, ao abrir a porta, vai receber a criança. A mãe acompanha o surgimento da luz do dia de natal, luz que é também de ordem espiritual: "A lua, então, já resignara o reino vil que escondia as chagas da cidade, e grassavam já as labaredas que haveriam de mostrá-las, clareando o dia da cristandade". A mulher que aceita a criança impõe sacralidade a um dia e uma cidade totalmente desvirtuados em seu fundamento humano. 
O desencanto com o tempo presente, marca deste ficcionista que tem buscado o silêncio, escrevendo quase nada na última década, revela uma profunda recusa dos valores vigentes e só é abolido em instantes de retorno a uma outra idade e a uma outra cidade.

Miguel Sanches Neto é crítico literário, poeta e romancista. 
Seu artigo foi publicado no jornal Gazeta do Povo, de Curitiba, em 11 de dezembro de 2000.