Sergio Faraco      

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Crítica

 

Fabrício Carpinejar

Sérgius Gonzaga
Miguel Sanches Neto

 

 

UMA ESTADIA NO INFERNO RUSSO

Fabrício Carpinejar

Lágrimas na chuva (L&PM, 171 páginas), eleito o melhor livro de 2002 pelo jornal Zero Hora, é um breviário doloroso de dois anos (1963-65) de Sergio Faraco na União Soviética, onde cursou o Instituto Internacional de Ciências Sociais, de Moscou. Poderia ser catalogado como uma curiosidade o fato de um dos melhores contistas brasileiros, autor de Rondas de escárnio e loucura, se propor a fazer uma biografia. Mas não foi uma extravagância. A obra demorou trinta e cinco anos para ser externada. O escritor relutou em transpor suas experiências, ensaiou o início várias vezes, até que aceitou publicar capítulos semanais no jornal A Notícia, de São Luiz Gonzaga. O compromisso semanal o obrigou a disciplinar as recordações. A demora também ganhou um maior sentido com a frase de personagem de Juan José Morosoli, que reluz como epígrafe da narrativa: “As viagens só começam depois que a gente volta”. Na literatura, os desembarques demoram a acontecer. Volta-se o corpo, mas não as bagagens. O livro retrata o perfeito caso de extravio de pertences.

Faraco é filho da serenidade e não faz outra coisa senão deixar a narração a cargo dos próprios acontecimentos. Ele torna-se um espectador silencioso de seu percurso. Tudo é posto no devido lugar, cada fraseado, sem excessos literários, fluxo desordenado de consciência e achaques de estilo. Conta-se o que se ouviu, ainda que os pensamentos queiram opinar. A escrita fecha a letra em linha seca e reta, impiedosa como cortes de estilete em papel grosso. Os riscos ao drama folhetinesco eram enormes. A história oferecia elementos para chorar ritmado. O que se encontra é a maturidade objetiva e a contenção de quem não faz juízos morais ou recrimina culpados (e motivos não faltavam para isso).

O enredo mostra o convite aceito de um jovem escritor, aos 24 anos, para estudar na União Soviética, em 1963. A provável aventura desemboca numa tragédia. Simpatizante do comunismo, o rapaz está disposto a conhecer o mundo e juntar currículo, atendendo a avidez de seu futuro em aberto. A viagem acontece no momento errado do jeito errado. Lá chegando, no frio russo, entre o romance com Nina e o aprendizado áspero da língua, descobre que o regime não admite nenhum desvio e discordância. Ocorre o aniquilamento da individualidade em nome de uma hipnose coletiva. A ironia é que o protagonista passa a ser denunciado pelos colegas brasileiros e termina em uma clínica psiquiátrica para correção de comportamento. Voltar ao Brasil é quase impossível, já que começava um regime militar no país e ele carregava o antecedente de uma viagem à URSS. Estava definitivamente exilado entre dois mundos, sendo que num deles seria visto como comunista e no outro, como anti-comunista. Nenhuma das paragens o permitia existir.

Apesar da ênfase memorialística, Lágrimas na chuva (o título é pop, inspirado em frase do filme Blade runner) estabelece uma carga extra de fabulação e tensão ficcional. São confissões generosas, que não levam à amargura, e afirmativas, apesar do contexto de trevas e solidão. Revelam um alto grau de compreensão dos limites. Servem também como alerta ao totalitarismo que cresce na covardia moral individual. Talvez seja um livro feito para a memória, não da memória. Não é de se estranhar que grandes romances no país, como bem observou Luis Augusto Fischer, tenham essa ligação uterina com a evocação das lembranças, seja contemporaneamente com Carlos Heitor Cony (Quase memória), seja em outras eras com Raul Pompéia (O Ateneu). O visionário memorialista mineiro, Pedro Nava, completou o quebra-cabeça sobre as diferenças entre o vivido e o inventado. A peça que faltava está em seu terceiro volume autobiográfico, intitulado Chão de ferro: “Que é a verdade? É com essa pergunta que entro nesta fase de minhas memórias, fase tão irreal e mágica e adolescente como se tivesse sido inventada e não vivida. Se eu fosse historiador, tudo se resolveria. Se ficcionista, também. A questão é que o memorialista é a forma anfíbia dos dois e ora tem de palmilhar as securas desérticas da verdade, ora nadar nas possibilidades oceânicas de sua interpretação”. Nesse sentido, Lágrimas na chuva é um romance real. O que vale é o impacto psicológico que proporciona. Se a emoção não serve ao historiador, ao ficcionista é tudo. Faraco fez ficção da realidade. O tempo virou engenho da memória. O escritor encontrou a sua verdade, diferente de todas as outras verdades e, portanto, tornou possível e suportável a vida, que nunca dá mesmo maiores explicações.

(Publicação original em http://carpinejar.blogger.com.br)