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Ilusória Realidade (sobre a série O Muro)

No curso da vida, há acontecimentos modestos que podem ser uma dádiva. Eu acabara de chegar no hotel. Sempre no centro desta clara neblina, que vêem os olhos do cego, explorei o quarto indefinido que me haviam destinado. Tateando as paredes que eram ligeiramente rugosas, e rodeando os móveis descobri uma grande coluna redonda que era tão larga que quase não conseguiram abraçá-la meus braços estendidos, e me custou juntar as duas mãos. Maciça e firme se elevava até o alto. Soube em seguida que eram brancas. Durante alguns segundos conheci essa curiosa felicidade que descortina o homem, as coisas que são quase um arquétipo. (...) Em um outono, em um dos outonos do tempo as divindades de Shinto se reuniram, não pela primeira vez, em Izumoo (Japão) (...) e uma das divindades disse: "Demos aos homens a sucessão, o dia e a noite. Os peixes e o arco-íris. Acabaram de criar uma arma invisível que põe fim à história. Antes que isso ocorra, devemos exterminar o homem". A outra divindade disse: "E verdade. Mas criaram também algo que cabe no espaço de 17 sílabas. Que homens perdurem". Assim, por obra de um haiku, a espécie humana foi salva..."

Jorge Luiz Borges em passagem do livro "Atlas", relatos de viagens pelo mundo.

......Não poucas vezes a fotografia revelou de maneira tão contundente a efemeridade do corpo dentro de uma perspectiva da imagem e sua capacidade de permanência e dissolução. Muitos artistas tem explorado questões que vão desde o corpo como depositário de repressões e territórios de manipulação e horror a uma certa artificialidade da construção orgânica da carne.

......O corpo, exemplar detentor de todas as razões construtivas que tem marcado o maneirismo que marca a fotografia atual, se apresenta aqui como um objeto de memória subliminar resguardada. Trata-se antes de tudo de referir-se a uma potência física e sexual subjugada a uma condição que explicita a dinâmica do encontro com a pureza de sua perda. Não existe aqui o voyerismo mas uma estrutura do olhar condicionada à morbidez e a um certo fetichismo. Não se trata em absoluto de "arte mórbida" de ingleses como Damien Hirst ou um Mark Quinn. Curioso entretanto é a condição não expressionista destas fotografias, talvez mais próximas de Cindy Shermann e Mapplethorpe.

......Sabemos que a experiência estética é diferente da experiência real que tem o peso da vida. Entretanto estas fotografias de Roberto Schmitt-Prym procedem um determinado atrito construtivo entre realidade e verdade. A "verdade da vida” seguramente não é aquela que nossos olhos são capazes de suportar, mas ela se nega a tornar-se conceito e ainda que contrariamente a sua própria natureza, trabalhemos sempre para torná-la estética.

......Essa instalação rejeita o conceito de realidade subjacente, aquela medida pela inclinação ao mito trágico, à perspectiva de mortalidade eminente, à qual recusamos sistematicamente, e que constitui imagens que somente tangenciam o universo da representação. Não se trata entretanto, de uma mimese do corpo mas da sua explicação. A presença destes corpos reside fundamentalmente fora deles. Ironicamente poderíamos dizer que eles morreram um pouco. Schoppenhauer pressupõe que a vida humana ou é dor ou é monotonia, e já que a felicidade dura pouco a vida é sobrepujada pelo sofrimento.

......O homem que por sua própria natureza as vezes à rejeita oscila entre a permanência e a efemeridade, mas as vezes obrigatoriamente é obrigado a violá-la.

......É precisamente na evidência em que se manifesta que somos obrigados a admitir a realidade destas fotografias. A evidência delas e que mostra a complexa destinação que damos ao corpo e seus desdobramentos. A superfície destes corpos se perde na expressividade de sua destruição, que de se perderem no desaparecimento se afirmam na condição de humanidade que possuem.

Gaudêncio Fidelis

É bacharel em Artes Plásticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em Arte pela Universidade de Nova Iorque e Doutor em História da Arte pela Universidade do Estado de Nova Iorque. Sua tese de doutorado chama-se The Reception and Legibility of Contemporary Brazilian Art in the United States (1995-2005). Foi diretor do Instituto Estadual de Artes Visuais do Rio Grande do Sul e fundador e primeiro diretor do Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul. Foi curador do Ciclo Arte Brasileira Contemporânea do Instituto Estadual de Artes Visuais quando organizou exposições de Ângelo Venosa, Carlos Vergara, Carlos Fajardo, Jac Leirner, Karin Lambrecht, Iole de Freitas e Marco Gianotti, e a exposição 111 de Nuno Ramos. É autor dos livros Dilemas da matéria: procedimento, permanência e conservação em arte contemporânea (MAC-RS, 2002), e Uma história concisa da Bienal do Mercosul (Fundação Bienal do Mercosul, 2006). Foi curador-adjunto da 5ª Bienal do Mercosul e curou a exposição especial Fronteiras da Linguagem, que levou para Porto Alegre a obra dos artistas Ilya e Emilia Kabakov, Stephen Vitiello, Marina Abromovic e Pierre Coulibeuf